sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O AMOR NA MITOLOGIA: UMA LEITURA ARCAICA DO MITO GREGO POETICAMENTE ACOLHIDO

O mito do Amor em sua nascente arcaica — O Começo das Coisas...

Na origem, o mito do Amor está circunscrito na narrativa do princípio das coisas. Para compreendê-lo é preciso levar em conta os termos desta narrativa (ou narrativas) em seu círculo gerativo retornante. As mitologias de todos os povos primevos da Terra agrupam muitas narrativas acerca do princípio das coisas. A ocidental, de origem grega, também tem suas cosmogonias originantes. A que se considera a mais velha parece ser a que vem de Homero, quando atribui a Oceano a “origem de todos os deuses”, e a “origem de tudo”. Como narra Kerényi, “Oceano era um deus-rio; um rio e um curso de água e um deus na mesma pessoa, como os demais deuses-rios” (1998, p. 25). Como deus-rio, possuía poderes inexauríveis de gerar, como acontece com os nossos rios. Entretanto, Oceano não era um deus-rio comum, o seu ser-rio não era um rio comum. A partir do momento em que tudo dele tem origem, dele tudo flui incessantemente nele mesmo. Oceano é, assim, um deus-passagem, deus-fluxo em si mesmo. No princípio, portanto, estava o FLUXO, ser origem e fluxo, “fluindo de volta sobre si mesmo num círculo”. O Fluxo é, então, a força do que reflui incessantemente para si mesmo. O Fluxo é o Mundo, o Cosmo, o Universo. Fluxo é a Vida em seu modo de ser-fluxo. O Fluxo reflui de si mesmo para além de si mesmo, em si mesmo. Fluxo é campo de força e vastidão: incomensurabilidade. A Água é Fluxo; o Fogo é Fluxo; a Terra é Fluxo; o Ar é Fluxo. Tudo o que é, é Fluxo.

Fluxo, então, é o deus originante de tudo o que é. Oceano é o seu nome grego na designação de um deus-rio. A água, portanto, é o seu elemento. E porque se trata da água que jorra de uma nascente, o deus Água, Oceano, é a própria nascente em seu perene fluir: a nascente que se perpetua na nascente e se expande aos confins do seu fluir, e para si mesmo retorna originando o Fluxo, na escuridão abissal do infundado Caos.

No princípio, então, é o Fluxo. O Fluxo chamou-se Oceano; Oceano presentificou a Água como elemento originante. Entretanto, Oceano em si mesmo é o par de Tétis: ele mesmo é, enquanto Oceano, a própria Tétis, isto é, a Mãe de tudo o que é. Oceano e Tétis formam o casal original. O Fluxo, portanto, é Fluxo fundado na diferença entre o “O” e o “T”, isto é, no encontro de iguais enquanto Fluxo: o meio, não o início, não o fim, mas apenas o que flui, o que jorra, o que escorre e o que passa apenas para recomeçar a passar de novo, sempre outro, sempre o mesmo fluir-ir-e-vir. Ao poucos indícios mitológicos acerca de Tétis a associam à Senhora do Mar, isto é, a esposa de Oceano.

Contudo, procurando ouvir uma outra ressonância, aquela que parece provir do poeta Orfeu, o sentido de Fluxo como o “casal original”, compreendendo aí a geração de um campo de força no fluir incessante das coisas. Esta outra narrativa nos diz que no princípio era a Noite (Nyx). A história a descreve como um pássaro de asas negras. A Noite copula com o Vento e gera Eros. Na narrativa de Kerényi:

A antiga Noite concebeu do Vento e botou o seu Ovo de prata no colo gigantesco da Escuridão”. Do Ovo saltou impetuoso o filho do Vento, um deus de asas de ouro. Chama-se Eros, o deus do amor; mas este é apenas um nome, o mais lindo de todos os nomes usados pelo deus. (1998, p. 26)

Nessa versão da origem dos deuses, Eros é o filho do casal primogênito. O ovo do qual nasce Eros é de prata. Eros, entretanto, luze com suas asas de ouro. O amor, assim, nesta imagem arcaica, é encantador e flamejante. O amor tem asas de ouro. Ou melhor, o amor tem asas de fogo. O amor encandeia em seu próprio luzir dourado. O amor, assim, é quase o astro rei em sua marcha perene. A solaridade do amor em suas asas de ouro: o quente, o agitado, o fluido incandescer pulsante.

Eros é o deus do amor. Nesta revisão, os seus outros nomes aparecem como atribuições de sua pujança ígnea. Assim, Eros é também conhecido como Protógono e como Fanes. No primeiro caso, salienta-se que ele foi o “primogênito” de todos os deuses, enquanto no segundo caso, indica-se exatamente o seu primeiro ato ao sair do Ovo: “revelou e trouxe à luz tudo o que antigamente jazera escondido no Ovo de prata — em outras palavras, o mundo inteiro” (Kerényi, 1998, p. 26). Acima deste Ovo de prata estava o vazio, isto é, o Céu. Abaixo dele, o Repouso. Os gregos chamaram este vazio de “Caos”, ou seja, simplesmente aquilo que “bocejava”, a absoluta ausência de qualquer coisa, a Escuridão abissal do Nada. Só com o passar do tempo é que a palavra “Caos” irá adquirir o sentido de tumulto, confusão e desordem. Esta perda do sentido mais original de “Caos” ocorre em virtude do surgimento do pensamento originário grego, que elabora uma doutrina dos Quatro Elementos. Deste modo, na sua forma primeva, o Caos encontrava-se abaixo do Ovo em estado de quietude; o Caos era Repouso. Segundo uma outra versão da história, a terra jazia abaixo do Ovo, e o céu e a terra se uniram. “Essa foi a obra do deus Eros, que os trouxe para a luz e depois os obrigou a se misturarem. Eles produziram um irmão e uma irmã, Oceano e Tétis”, como diz Kerényi (1998, p. 26).

Essa velha história de origem órfica, provavelmente, tinha sua continuidade na narrativa que dizia que, no princípio, Oceano encontrava-se abaixo no Ovo, não estando só, mas acompanhado de Tétis. Este par primordial foi o primeiro a agir sob a compulsão de Eros. Como se encontra em um poema de Orfeu: “Oceano, o que flui lindamente, foi o primeiro a se casar: tomou por esposa Tétis, sua irmã por parte de Mãe”, isto é, a Noite (Nyx).

Isso mostra, na versão órfica, Eros como o primogênito de todos os deuses nascidos da união da Noite com o Vento. A partir de Eros ocorre o refluir da própria origem como Fluxo. Eros, assim, é a origem da união dos opostos em fluxo e refluxo contínuo. O Amor, desta forma, em sua origem é a força de atração e repulsão de tudo o que é. O Eros primordial é a força de coesão do mundo: a união dos opostos em perpétuo fluir gerador — a gênese da multiplicidade. O Amor, assim, como deus originante, é a incandescência da vida em seu esplendor instante: o intemporal que freme na temporalidade — a superfície bela do mostrar-se encandido, inflamado nas cordas que ressoam sua imagética ígnea. O Amor primordial, assim, é o verbo “amar”.

Etimologicamente, Eros, em grego “Érõs”, provém do verbo “érasthai”, que significa estar inflamado de amor, designando algo como desejo incoercível dos sentidos. Há, também, uma versão de Carnoy que faz uma aproximação deste verbo com o indo-europeu (e)rem, que significa comprazer-se, deleitar-se (Brandão, 1993, p. 356). De qualquer modo, é como verbo que o deus Eros se mostra na origem: o verbo Amar. Isto indica, entre outras coisas, o desejo incoercível dos sentidos: comprazer-se, deleitar-se; indica, portanto, o querer-ser de tudo o que é vivo e vivente. O Amor primordial, assim, encontra-se despersonificado, o que não quer dizer que se encontre desencarnado. De forma precisa, ele é a encarnação da vida-sendo: o Fluxo. E o Amor, enquanto Fluxo, cinge, no mesmo Ovo de ouro, a Necessidade e a Liberdade. O Amor é justamente o meio de propagação desta união. Unido é o Amor na perpetuação do Fluxo vivente da diferença primordial dos opostos. O Amor, portanto, está sempre no caminho de si mesmo: por isso é sempre um consumar-se perpétuo, um dilacerar-se incansável. O Amor é sim, desejo: a carnalidade dos sentidos. O Amor sente, ele é sentido-sendo. O Amor é, assim, também cego: nele não se pode encontrar o ordinário, o corriqueiro, o plausível, o racional, o sensato. Ele, o Amor, é a encarnação do que freme de vida em todas as direções e sentidos. O Amor ama. Ao amar, o Amor se consuma em superfícies. Ele goza o gozo por si mesmo, e nunca depende do outro para gozar. O outro é, assim, para o Amor, motivo de si mesmo: o outro é o Amor do outro — afinal, tudo flui incessantemente para o sempre outro de si. Envolto em sua igneidade velada, o Amor sempre surpreende o seu amante. O amante é para o Amor o seu desejo no amar do outro: a alteridade luzente do Fluxo.

Para fechar o círculo das narrativas arcaicas e despersonalizadas, irei agora relatar a terceira versão do mito do princípio, na qual o Amor (Eros) aparece em sua forma originante. A mesma encontra-se na Teogonia de Hesíodo. Preferimos, aqui, transcrever os versos de Hesíodo (1992) pela tradução de Jaa Torrano. Situando a narração da origem, Hesíodo evoca as Musas para que falem do princípio de tudo. No que elas respondem:

Os Deuses primordiais

Sim bem primeiro nasceu caos, depois também

Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,

Dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,

E Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,

E Eros: o mais belo entre os Deuses imortais,

solta-membros dos Deuses todos e dos homens todos

Ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.

(Hesíodo, 1992, p. 111)

Nessa passagem breve do poema de Hesíodo, Eros aparece como “o mais belo entre os Deuses imortais”, libertador dos membros dos deuses e dos homens, e governante do espírito de todos os deuses e homens. Sim, em Hesíodo é apenas esta a presentificação do Amor primordial. Eros, assim, de forma velada, aparece como um deus que é o mais luzente de todos, isto é, o mais brilhante — o mais belo. Da suprema beleza de Eros provém a força que desconcerta deuses e homens, liberando-os das libações sem-sentido. Assim, Eros governa o “coração” de deuses e homens: “doma no peito o espírito e a prudente vontade”. Isto é o Amor (Eros) na versão hesiódica.

Entretanto, acolhendo a interpretação de Kerényi, é preciso observar a situação de Hesíodo em sua ambiência histórica particular. Pastor, lavrador e poeta ao mesmo tempo, quando jovem pastoreava carneiros na montanha divina do Hélicon, local de culto ao deus Eros e às Musas. Circulavam pelas redondezas do monte Hélicon os discípulos de Orfeu, que devotavam especial reverência a essas divindades. Significa dizer que Hesíodo provavelmente não desconhecia a versão órfica do mito da origem. Concordando com Kerényi, a história contada por Hesíodo soa como se ele tivesse omitido o ovo da história da Noite, o Ovo e Eros, apresentando Géia, a Terra, como a deusa primordial, justamente pela sua proximidade com o elemento terra, na qualidade de agricultor. E se em sua Teogonia ele cita primeiro o Caos, este não era para ele uma divindade, mas tão somente um “bocejo” vazio — isto é, o efeito do ovo vazio depois de retirada a casca.

De qualquer modo, também em Hesíodo, Eros é um deus que não se encontra ainda personificado, apesar de mostrar-se como “o mais belos entre Deuses imortais”, o que também indica uma distinção que apresenta uma diferença: Eros é o que liberta os imortais e os mortais dos grilhões da indistinção e da não-vida. Assim, Eros também aqui se mantém como força jorrante, na medida em que “doma no peito o espírito e a prudente vontade” dos imortais, assim como dos mortais. Tudo, deste modo, é perpassado pelo agir de Eros em seu fulgor extasiante. Na versão de Hesíodo, Eros permanece sendo uma força ingente que a tudo arrasta em sua desconcertante marcha. Entretanto, ele consegue conjugar a força desconcertante do Amor — que a todos “solta-membros”, isto é, enlouquece, libera, multiplica, extasia —, com a força capaz de domar no peito (coração) o espírito, levando a vontade a temperar-se no caminho do meio, isto é, na prudente sabedoria. O Amor primordial em Hesíodo, deste modo, apesar de esconder-se em sua vastidão incomensurável, é tanto a paixão bruta do desejo cego, a híbris, como a sabedoria hineante da mais bela harmonia, a díké. O Amor é o “descomedimento” e o “comedimento” conjuntamente, o “desequilíbrio” e o “equilíbrio” em um só fruir. O Amor é assim: oras é arrebatamento, oras é sabedoria; oras rebento ingente, oras apaziguamento vívido, despojamento serenojovial e humor benfazejo. O Amor se esconde em muitas faces: ele se metamorfoseia em diversidades sempre inesperadas.

Em Hesíodo, o Amor primordial, o deus Eros, é apenas evocado em sua luzência fundante: ele perde os contornos de sua imperância primordial, para distribuir-se como Idade da Justiça, a denominada Era de Zeus. A saga de sua Teogonia compreende um arco de tempo que vai do Caos até Zeus, ou seja, vai do Caos até a culminância da terceira geração divina, identificada como a Era da Justiça. A partir do enfoque de uma decadência brutal do espírito dos homens, tendo vivido ele mesmo na pele o despotismo de senhores feudais desonestos e injustos, promotores da injustiça entre os homens, Hesíodo profetiza o advento de uma nova era. E porque o enfoque de Hesíodo é a rememoração do que foi e o que virá, o mito do Amor em sua forma arcaica é deixado de lado para dar lugar a uma outra criação: a criação do homem. Este, entretanto, é fruto de relações incestuosas entre os imortais e os mortais, são neste sentido “heróis”, isto é, filhos nascidos das relações amorosas entre os diferentes pólos do desejo. E porque com Hesíodo envereda-se em uma passagem onde mortais e imortais se aproximam como nunca, o Deus do Amor se faz também a temperança de um temperamento justo: alcança o Amor maduro. Neste aspecto, teríamos que percorrer outros caminhos e desembocar no grande Oceano do Amor Sábio. Este, entretanto, sempre se vela nas peripécias de sua divina mania: não se deixa nunca capturar em redes fixas e em casas abandonadas. O Amor Sábio, em Hesíodo, parece confundir-se com a figura do grande Zeus. Zeus, assim, seria a presentificação do Amor maduro, isto é, o Amor Sábio: a justa medida.

Nessa transposição arriscada, o Amor Maduro perde o seu contorno primevo e se encarna na poeticidade do fazer humano. Esta passagem, entretanto, não é feita de uma só vez, o que não cabe ao mito explicar, pois, enquanto narrativa originante, o mito do Amor não foi deixado para trás no tempo das “fábulas” e das “fabulações”, mas continuamente faz acontecer o ser em sua ingente beleza: tudo sempre precisa sempre recomeçar para poder fazer algum sentido.

O mito do Amor, deste modo lido, arcaicamente lido, não é, portanto, uma mera “fábula”. Ele, em sua fala estranha e estrangeira, me faz cantar em sua vigência e em seu nome dizer de novo: não é preciso acreditar no Amor para que ele exista. Neste sentido, o Amor não pode ser objeto de crença e sua personificação, qualquer que ela seja, não passará de sombra pálida de sua luzência perene. Sua luzência, entretanto, não é visível apenas pelos sentidos comuns, mas também se propaga fora da visão e dos sentidos. Sua luzência é a perenidade da doação pulsiva e liberadora. Assim, sua luzência nada tem a ver com as luzes da razão sempre certa, sempre lógica. Pelo contrário, o Amor prima pela sua irrazão, ou melhor, por sua abundância jorrante e sempre sensível.

A partir dessa perspectiva apresentada do Amor mítico, o mesmo foi acolhido poeticamente em sua força ingente e originante. Para mim, isto quer dizer uma coisa muito simples: nesta minha fala não fiz mais nada do que reencontrá-lo em mim mesmo. Sinceramente, não fiz senão executar um cântico amante do Amor. Esta é a minha parte da lenha necessária para acender a fogueira coletiva desta mesa-redonda. Espero não tê-los entediado em demasia com essa leitura arcaica do Amor. Amor que se abriu como desvelamento de tudo o que é vivo e vivente. Amor despojado de suas infinitas manifestações singulares: força motriz de tudo — vida-sempre-viva ultrapassando-se.

 

[Dante Augusto Galeffi]

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